Uma história de áudio
Chiquinho Rodrigues -Eu fiz meu curso de cinema com o Abrão Bermam. Um cineasta que sabia tudo dessa arte e teve nos anos 80 um programa na TV Cultura onde ele falava de Produções em Super 8.
Estou falando disso porque dias atrás eu estava revendo um documentário que ele fez sobre antigas salas de cinema. Ele teve, há muitos anos, o saco de filmar quase todas as fachadas antigas de cinema do centro e de alguns bairros de São Paulo… na época em que ir ao cinema era um evento… pura magia!
Na segunda parte do documentário, ele mostra então no que se transformaram todas essas salas onde a gente passou boa parte da nossa infância sonhando. Cinemas que viraram estacionamentos com carros quase empilhados, mercados enormes, igrejas do Reino Universal, sacolões lotados de chuchu e outras coisas.
O final é dramático! Uma câmera subjetiva passeia por entre corredores e gôndolas de um enorme supermercado (onde era o antigo Cine Icaraí, na Mooca) enquanto a gente vai ouvindo em off a agonizante trilha original do filme “O Vento Levou”.
Quando termina, fica aquela mesma sensação quando ouvimos alguma notícia sobre desmatamentos e queimadas na Amazônia. A sensação ruim de que perdemos algo irrecuperável.
A narração é feita o tempo todo por um cara chamado Celso Guizard Faria.
Conheci o Celso e muitas outras vozes: Ronaldo Batista, Guilherme Queiroz, Ronan Junqueira, Oliveira Neto, Odair Baptista, Claudinho Branco, Edson Mazieiro, Jorge Helal, Rosinha, Ciro Jatene, Sonia Perez, Neville Jorge e muitas outras, no Estúdio Bandeirantes.
Lembro do meu fascínio quando depois de muito tempo gravando com Ronaldo Batista, é que eu soube que era dele a voz do “Tenente Rip Master” (sei lá como escreve essa bosta), do seriado Rin Tin Tin. Era dele a voz que narrava as historinhas infantis nos Disquinhos Coloridos da Continental, que eu ouvia na minha infância, era dele também a voz do “Major Nelson”, do seriado Viagem ao Fundo do Mar. (mesmo agora, enquanto escrevo isso aqui, ainda ouço o barulho irritante da porra daquele sonar dentro do submarino).
Outro cara que lá eu conheci e sou fã até hoje é o Odair Baptista. O criador e narrador oficial da saudosa “Rádio Camanducaia”.
Sabe… Ele passava horas olhando para um mapa do estado de São Paulo, que a gente tinha pendurado em uma parede lá no Estúdio Bandeirantes, criando pérolas como: “Falamos diretamente da Rádio Enchente de Tiete, juntamente com nossas coirmãs, Rádio Fronha de Lençóis Paulista e Rádio Petit de Poá” (só quem conhece o Odair, é que sabe do que estou falando).
Nesse Estúdio passou muita gente boa. Atores, cantores, músicos, publicitários, maestros, bicos e centenas de colaboradores.
O principal articulador e aglutinador de tudo isso é um cara que hoje é meu amigo, meu sócio, meu irmão e quase o tempo todo meu pai. Cláudio Durante.
Passamos mais de vinte anos naquela casa.
Rua Cunha Gago, 463 – Pinheiros.
Época de ouro do Áudio. Anos Dourados dos jingles e das trilhas sonoras. Um lugar que, por muitos anos, foi de todos os sons, de todos os tons, de todos os climas… de altos e baixos, de muita grana, de pouca grana, de muita amizade, de muita briga mas, sobretudo, de muita magia.
Mas um dia, depois de muitos anos e num Brasil de incertezas como o nosso, a gente teve que deixar aquela casa. Um dia triste numa trajetória cheia de alegrias.
Mudar e se adaptar a uma nova estrutura não foi tão difícil assim. Duro foi voltar depois de alguns meses e ver demolida pela metade a casa da Cunha Gago, onde durante anos havia sido o Estúdio Bandeirantes.
Parei em frente e fiquei olhando. A casa não tinha mais telhado e algumas paredes da frente já estavam derrubadas.
Lá de fora a gente podia ver ainda alguns pedaços de Eucatex que forravam as paredes do estúdio de gravação.
Paredes que, se tivessem voz, contariam pra gente do dia em que Adoniram Barbosa esteve lá e gravou um spot premiado com o Clio Awards. Contariam todas as piadas que o Guilherme Queiroz contou pra gente. Contariam das vezes em que lá estiveram Lima Duarte, Rolando Boldrim, Luis Armando Queiroz, as irmãs cantoras Sarah e Ângela, os cantores Paulinho Baiano, Ringo e Nico Rezende, os publicitários Cacau, Zeca dAbril, Orlando Marques, Adilson da Open, Fazzio, Ciça, Léo Togashi, Macedônia e Manoel Choofi, Os arranjadores…
Mauro Georgetti, Will Coks e Edgard Poças, os técnicos Davi, Miro e Janjão, e também…
Chico batera, Cris, Delmo, Rui, João Luis, Percy, Lázaro, Leandro, Aurélio, Akamatu, Freitas, João fotógrafo, Caetano Zama… E por aí vai.
Tenho certeza de que se eu conseguisse encostar o ouvido bem perto dessas paredes quase destruídas, eu ouviria ainda trechos de jingles infantis cantados pelo Seltom Melo e o irmão (os dois entre 11 e 12 anos na época). Ouviria também coisas das Lojas Abaeté…
Tatuzinho… Velho Barreiro… Kitchens… Tecelagem Cinerama… Cultura Inglesa… Le Postiche… Shampoo Karina… O Chico Baiano afinando a bateria, o Lázaro tocando piano, e o Cláudio e o Davi mixando um áudio.
Fiquei torcendo pra que meus amigos David e Miro, que foram técnicos desse estúdio, não vissem aquilo assim desse jeito. Rezando pra que o Cláudio e a Beth (que fora sua secretária), passassem a quilômetros de distância dali nessa hora.
Ontem, uma vez mais, eu passei de carro ali em frente.
Não resisti e parei.
Sabe cara… Transformaram aquilo tudo num imenso e triste estacionamento. Lembrei então do documentário sobre as salas de cinema e me perguntei se estamos fadados a todos nossos sonhos se transformarem em horríveis e frios estacionamentos.
Parado mais uma vez ali, e lembrando de todas as coisas que vivemos nesse estúdio, (juro que eu ouvi o som da gente gargalhando das piadas do Guilherme Queiroz), eu pensei que fosse chorar.
Mas em vez disso, dei partida no carro, engatei a primeira e fui devagarinho até o semáforo. E quando ele abriu, eu entrei pela última vez à esquerda na Cardeal Arcoverde.